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Um rasgo no tempo (Vida Müller Giordano) por Ivani Soares

  • Um rasgo no tempo (Vida Müller Giordano) por Ivani Soares

Ao longo deste ano, divulgamos insistentemente o período de inscrições para o Concurso de Literatura dos Clubes. Com realização da Sindi-Clubes e parceria com a Fenaclubes, a premiação do concurso foi revelada na última edição do Congresso Brasileiro de Clubes. Nenhum dos envios dorenses logrou alcançar os primeiros lugares do concurso, que teve as categorias conto, crônica e poesia. Contudo, os associados do Clube Dores foram os mais engajados em todo o país, submetendo maior número de obras, dentre todas as agremiações brasileiras. Por isso, a Dorense em Revista divulgará alguns dos textos enviados pelos associados do Clube. Acompanhe esta série literária ao longo das próximas edições. Gostaria de participar do Concurso de Literatura dos Clubes? Em 2020 haverá uma nova edição, que será propriamente divulgada na Dorense em Revista. Prepare suas obras (é possível enviar uma por categoria) e aguarde!

Confira abaixo o texto enviado pela associada Ivani Soares, mestre em Políticas Públicas e Gestão Educacional pela UFSM, graduada em Letras e Direito. É revisora textual e professora voluntária de Português. É integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa Dialogus, do Centro de Educação da UFSM e colaboradora do Projeto de Extensão “Hora do Conto: Lendo o mundo e auto(trans)formando realidades”.


UM RASGO NO TEMPO (Vida Müller Giordano)

Eu sabia que logo reencarnaria e estava um tanto entediada pela espera, de maneira que decidi abrir uma pequenina fresta na cortina das dimensões e espiar aqueles que seriam meus pais terrenos. O minúsculo rasgo de tempo-espaço não passou de segundos para mim, no entanto, foi o suficiente para acompanhar cerca de um ano físico na quinta dimensão. Exatamente o último ano que antecedia meu nascimento. Um pouco do que vi daquelas vidas, ora tranquilas, ora turbulentas, é o que conto.

A família vivia há alguns anos já em uma localidade pequena do interior do Rio Grande do Sul. Descendentes diretos de corajosos imigrantes que se aventuraram a desbravar o “novo mundo”, traziam no DNA memórias de lugares longínquos, escondidas em lágrimas furtivas. Sua luta era forjada pela enxada ou pelo machado em uma mão e pelo rosário na outra, e, assim, iam refazendo a vida.

Minha futura mãe terrena, Amélia, era uma mulher franzina, porém forte, acostumada à pesada lida no campo e da agricultura, somada aos afazeres da casa. Trazia no rosto as marcas de uma vida de muito trabalho, mas que não escondiam uma expressão bondosa. Pelo poder da clarividência, comum a todas as almas na dimensão onde me encontrava, pude enxergar flashes de sua infância, podada em tenra idade pela obrigação de fazer todo tipo de serviço. O padrasto, homem cruel, não poupava a ingenuidade nem as poucas forças dela menina. Muitas vezes havia sido acordada no meio da noite para ir até a venda buscar cachaça, sendo seriamente castigada casos e recusasse. Nessas ocasiões era preciso encilhar o cavalo e seguir por uma estradinha que passava no meio de uma mata assombrada por barulhos infernais. Vez por outra, corriam de uma imensa bola de fogo, que parecia muito mais veloz do que as patas do cavalo. O medo acompanhava a ambos, olhos esbugalhados.

Pedro, o esposo, também não tivera muitos privilégios. Primogênito entre três irmãos, foi o designado para a lida, ao lado do pai. Todos os dias, levantavam as quatro horas, fizesse o tempo que fizesse. Tratavam os animais, tiravam o leite, limpavam os chiqueiros e cortavam lenha. Então tomavam uma xícara de café com uma fatia de pão e seguiam para a lavoura. Por volta do meio dia, comiam uma marmita lá mesmo, fria, e seguiam trabalhando até o anoitecer. Dia após dia, a rotina era a mesma.

Aos irmãos de Pedro, uma mulher e um homem, o destino se encarregou de reservar o matrimônio e os estudos, respectivamente. Um tom de revolta por essa circunstância, vez por outra manifestava-se, mas era logo afastada pelo cansaço do trabalho diário. Pedro era teimoso e odiava ter de obedecer a ordens. Acreditava que o casamento poderia significar algumas liberdades; dentre elas, a mais importante, adquirir o poder de decisão sobre a própria vida.

Conheceu Amélia no tempo de uma safra. Ela estava vestida de modo muito simples e tinha o rosto inchado por conta de um dente estragado; era bonita ainda assim e Pedro percebeu um belo par de olhos tristes por baixo da aba do chapéu. Ele gostou do que viu. O padrasto a havia cedido para auxiliar no trabalho de colheita da safra do pai de Pedro; ele sempre fazia isso, obrigando-a a trabalhar até a exaustão e ficando com todo o pagamento que ela recebia. Pensando nos planos de casamento, Pedro falou com seu pai que seria bom ter alguém para auxiliá-los na lavoura e na lida da casa, já que sua mãe estava sempre acamada. Falaram com o pai de Amélia, ofereceram um dote, e tudo foi arranjado.

Ela concordou, feliz por livrar-se das maldades do padrasto. Depois do casamento, ficaram morando num galpão, ao lado da casa dos pais de Pedro. A vida de Amélia continuou difícil, agora maltratada pela sogra. Nada do que ela fazia estava bom o suficiente e acabava tendo que ouvir todo tipo de xingamentos. Viveram ali por cinco anos. Há três, finalmente, tinham conseguido comprar um pedaço de campo e construído sua casinha, pequenina, muito simples, mas só deles. Viviam em harmonia, com os filhos, duas meninas e dois meninos; as dificuldades eram enfrentadas com coragem e persistência. Já tinham plantado de tudo um pouco, frutas, verduras, legumes, abóbora, amendoim, mandioca e feijão, e quase tudo já estava produzindo.

A REVIRAVOLTA: Mudança/Viagem/Luta...

Um dia, Pedro discutiu feio com o pai, cansado que estava de obedecer e de trabalhar. Enfurecido, na primavera de 1963, tomou uma decisão. Ao chegar em casa à noite, disse à esposa: “Arruma tudo que vamos embora. Já vendi essa casa.” Tudo silenciou naquele instante, nem os pássaros ousaram arrulhar. Em choque, ela chorou e implorou, mas não teve mesmo outro jeito a não ser partir.

O caminhão que os levaria para longe de tudo o que conheciam chegou já no dia seguinte. Móveis, bichos, instrumentos de trabalho, tudo quanto possível foi posto na carroceria, inclusive os três filhos maiores. Amélia e o pequeno puderam ir na cabine junto de Pedro e do motorista. Não que isso representasse mais conforto. As estradas por onde passariam, estavam em precárias condições. Terra vermelha, muita poeira e muito sacolejo ocasionado pelos expressivos buracos por todo o caminho somados ao calor do quase verão, tornaram a jornada demorada e exaustiva.

Saíram do Rio Grande do Sul na madrugada de uma quarta feira. Passaram por Santa Catarina e, no sábado, quando já anoitecia, chegaram em terras paranaenses, em São Luís do Capanema. Quatro dias e três noites de sacrifícios. Um casebre no meio de um matagal, às margens do caudaloso Rio Iguaçu, era seu destino. Amélia, ainda em choque pela decisão da viagem, extremamente cansada e faminta, não teve forças para fazer muito mais naquele dia. Então, preparou uma refeição rápida com os últimos suprimentos organizados para a viagem. Alimentou os filhos e todos dormiram sobre os colchões jogados na carroceria do veículo, sob um céu estrelado, mas, rodeados pelo breu da noite. Sons de animais ferozes e de grilos cortavam o silêncio, assombrando sonhos, como a indicar maus presságios.

O sol da manhã ainda os encontraria fatigados. Mas era preciso seguir em frente. E assim fizeram, cada um ajudando no que podia. Pedro tratou de roçar o matagal que circundava o casebre, infestado de cobras, parando de vez em quando para ajudar a descarregar os objetos mais pesados. Amélia limpou como pode o casebre empoeirado e repleto de teias de aranha e, com a ajuda do motorista e das crianças maiores trataram de carregar móveis e outras coisas para dentro. O dia passou rápido e a noite caiu ao tempo em que tudo estava descarregado e o motorista se despedia, desejando sorte à família.

REFAZENDO A CAMINHADA: Recomeço/Plantio/Espera...

Foi muito difícil o recomeço. O vizinho mais próximo ficava a cerca de três quilômetros e o povoado onde havia uma escola ficava ainda mais longe. O filho maior estava na idade de ir para a escola; a irmã iria junto, para fazer companhia. Era preciso saírem de casa cedo, mal amanhecido o dia; de mãos dadas, levando a sacolinha com os cadernos, iam felizes, a inocência para a qual tudo é simples os acompanhava na maior parte dos dias. Somente quando chovia ou quando fazia muito frio é que viam dificuldades. A mãe ficava na porta da casa, olhando os dois até que desapareciam no horizonte, o coração angustiado pelo medo de serem atacados por algum bicho feroz ou alguma cobra venenosa.

Cerca de dois meses depois que haviam chegado naquele local, já havia de tudo plantado e crescendo: a mandioca, o milho, o amendoim, o feijão e a abóbora. Uma horta, perto de casa, também verdejava por conta dos chás e das hortaliças. Enquanto isso, a família ia consumindo o que havia trazido, comida remanescente da safra passada que consistia em feijão, mandioca e farinha de milho (usavam no preparo do pão e da polenta). Também tinham ovos, graças às galinhas levadas na mudança e guardadas a sete chaves, protegidas das raposas e de outros bichos que abundavam no local.  

Quando partiram, Amélia já estava grávida, embora não soubessem ainda. Agora, a barriga já estava em estado bem avantajado, dificultando a execução de algumas tarefas, como eliminar as muitas ervas daninhas que infestavam a plantação junto com lagartas, fede-fedes e uma quantidade de bichos mais. A época da colheita estava longe ainda e os mantimentos diminuíam a cada dia. Era preciso fazer algo, ou passariam fome. Então, Pedro convidou o amigo, morador mais próximo, para uma pescaria. O plano incluía atravessar o Iguaçu e caçar em uma reserva ambiental, na margem oposta. Prepararam tudo e partiram. Da janela de casa, Amélia e as crianças, apreensivas, olhavam a pequena canoa sumir no meio do rio.

DIAS DE ESCURIDÃO: Partida/Aguaceiro/Ruídos...

Dois dias após a partida para a tal pescaria/caçada o céu escureceu e uma grossa tempestade caiu. Foram 5 dias de chuva intensa nos quais tudo o que se ouvia era o barulho dos trovões, a água batendo no telhado frágil e cheio de goteiras e o ronco alto das corredeiras do Rio. O medo, a angústia e o desespero pela falta de notícias foram chegando de mansinho e tomando conta de todos. No dia da partida, uma das crianças estava febril, Pedro havia tirado um berne da nádega esquerda da criança; a ferida estava vermelha, mas não parecia inflamada. Com o passar dos dias, a ferida ficou bem feia, purulenta, e a febre aumentava a cada hora. As compressas frias e os banhos não conseguiam baixar a temperatura da pobre criança. Os outros se revezavam com a mãe, cuidando dela. Todos estavam irrequietos; até o feto que Amélia trazia no ventre agitava-se, como que sentindo a angústia da mãe, cujo coração apertado não queria saber de dar tréguas.

Então, da mesma forma como havia começado, a chuva parou de repente. Ainda assim, Pedro não retornava; a menina enferma continuava sem conseguir alimentar-se direito, bastante enfraquecida pelos dias de febre; e a angústia persistia corroendo todos. O tempo arrastava-se. Noites de escuridão, ainda mais carregadas de barulhos; dias de desespero, com muito mais horas do que o normal.

AVENTURA NO RIO: Caçada/Tempestade/Exaustão...

Longe dali, Pedro também pensava na família. Tinha medo por eles. Angustiava-se. Já havia perdido a conta dos dias em que estava fora de casa. O início da aventura havia sido conforme o plano e, no todo, ficariam fora três ou quatro dias. Já no início da caçada mataram um cervo grande e duas capivaras, era o suficiente e decidiram voltar. O céu estava se armando e parecia que uma tempestade logo chegaria. Apressaram-se para carregar o barco e a chuva começou. Ainda assim, pensaram que daria tempo de fazer a travessia de volta, mal sabiam que já havia chovido torrencialmente mais acima, na cabeceira do rio, de forma que foram surpreendidos por uma correnteza intensa.

Remar era praticamente impossível, não enxergavam quase nada, cegados pela força do vento e da chuva. As águas arrastavam o barco com os dois homens cada vez mais para longe, rio abaixo. Entregues à própria sorte, encolheram-se, cada um de um lado, equilibrando o peso para que a pequena embarcação não virasse e deixaram-se levar.

Cerca de trinta quilômetros depois, conseguiram apoitar em uma ilha no meio do rio Anoitecia. Puxaram o barco para terra firme, descarregaram, fizeram com ele um abrigo e por ali ficaram pelos cinco dias de chuva intensa. Aproveitaram o tempo para salgar bem a carne e organizar tudo nas latas que haviam sido levadas para esse fim. Depois que a chuva parou ainda foi preciso esperar alguns dias para a correnteza diminuir, e então, com muito esforço, alcançaram a margem oposta. Agora, bastava voltar rio acima e estariam em casa. No entanto, subir a correnteza mostrou-se impossível. Seria preciso enfrentar a mata fechada carregando o barco com a caça e os mantimentos. Uma jornada sofrida, perigosa e demorada.

Os dias mal amanheciam e os dois colocavam-se em marcha, primeiro abrindo picadas, a facão, depois carregando o barco com a caça e os mantimentos. A noite chegava e parecia que não haviam saído do lugar. Exaustos, comiam um pouco da carne da caça e começava a jornada noturna, enquanto um descansava, o outro vigiava. Os animais rugiam perto. Qualquer ruído fazia o medo explodir no peito. Impressionados, viam luzes, ouviam coisas, rezavam. Percebendo que não conseguiriam seguir assim por muito tempo, resolveram deixar para trás a embarcação e quase toda a carne da caçada. Levaram consigo somente uma lata de carne cada um, serviria para alimentarem-se durante o difícil retorno.

A QUASE DESESPERANÇA: Orações/Luzes/Renascimento...

Depois de mais de trinta dias, a esperança de rever o marido com vida, já era menos que um fio. A notícia do desaparecimento dos dois homens já havia se espalhado pelo povoado mais próximo e chegava a outros lugares. Estão mortos, diziam uns, é preciso fazer o enterro simbólico, diziam outros. O dia do parto se aproximava e Amélia estava desesperada; sem outra alternativa, noite após noite, rezava. E então, algo aconteceu: era bem tarde já, o silêncio tomava conta de tudo: as crianças dormiam e os bichos estavam estranhamente quietos, tão quietos que Amélia pensou ter ouvido um assobio. Sentiu um calafrio na espinha e apurou o ouvido. No tempo de um minuto, que pareceu uma hora, novamente pensou ter ouvido um assobio. Aquele era um barulho familiar, um aviso, combinado em outros tempos, em outras caçadas. Pensou estar enlouquecendo! Mas, então, aquele som amado fez-se ouvir outra vez e ela correu para fora da casa. Bem ao longe, avistou duas pequeninas luzes, que piscavam qual vagalumes na escuridão. A medida que as pequeninas luzes se aproximavam, oscilantes, o esperançar de Amélia se renovava... ainda não os via, mas o coração sentia.

De joelhos, minha mãe terrena agradeceu ao céu por trazer de volta o pai dos seus filhos e, ainda naquela noite, ela ouviria promessas de que ele nunca mais faria algo parecido e de que voltariam logo para o sul. Foi bom acreditar naquilo, naquela hora, mas a vida, ah, a vida! Logo a vida se encarregaria de preparar outras surpresas, outras dores, outras aventuras, em sua longa jornada. Se mudariam mais três vezes, dentro do Estado do Paraná, antes de voltar para o Rio Grande do Sul. Perigos ainda maiores seriam vividos... mas, essa é uma outra história.

O dia estava raiando e eles ainda estavam abraçados e chorando juntos. Os rostos molhados de lágrimas, os pés... encharcados... a bolsa acabava de estourar, estava na hora de fechar o rasgo do tempo e vir juntar-me a eles... Vida Müller Giordano, era assim que me chamariam!

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